Levo-te pelas mãos, devagar, como se aprendesses agora a caminhar. Pé ante pé, vens comigo em passos de criança, seguindo os dois muito juntos, lentamente, frente a frente, eu recuando de costas cuidadosamente, amparando-te pelas mãos até chegarmos por fim ao nosso carro que está no pequeno parque de estacionamento passando o pequeno portão do quintal da nossa casa, já tão magoado pelo tempo, reclamando ao nosso passar. Hesitas quando abro a porta do carro e peço-te para entrar. Respiro fundo e insisto contigo. Com delicadeza e paciência porque sei que não poderá ser de outra maneira. Digo-te que vamos dar uma volta por aí, passear até à tua terra. A tua terra que lá está, tão longe fisicamente de nós como está da tua memória. Vamos onde, perguntas-me tu, aparentemente surpreendido pela minha proposta. À tua terra, repito. Ter com os teus pais que estão à nossa espera muito preocupados. Acabas por aceitar estas mentiras docilmente. Está bem, vamos lá então, respondes-me finalmente, como na verdade tudo isto tivesse sido uma ideia tua. Será uma vontade nossa irmo-nos esquecendo de tudo aos poucos até não sobrar nada na nossa mente, até caírem todos os muros que protegem quem somos, acabando todas as nossas memórias por fugir para lá desse espaço sem horizontes, regressando e fugindo de novo como lhes convém, cada vez mais inócuas como fantasmas desfeitos? Talvez seja uma inevitável consequência de querermos esquecer os nossos pecados, de não pretendermos enfrentar a nossa realidade de frente, amar a nossa solidão. Mas talvez haja um preço por querermos esquecer o que nos convém e não possamos evitar perdermos tudo… as más e as boas memórias, os fracassos e os sucessos, as frustrações e os orgulhos, restando-nos os delírios até não restar mais nada. Não sei. Talvez apenas procure algo que faça mais sentido de que uma mera inevitabilidade genética. A viagem que idealizei até à praia vai demorar cerca de vinte minutos nada mais. Espero apenas que a tua impaciência não regresse e te mantenhas tranquilo até chegarmos ao destino. Na verdade, à medida que o carro vai avançando pela estrada acabo por perceber que se trata de um dia bom porque manténs-te calmo toda a viagem, apreciando a paisagem que descobres e esqueces no mesmo segundo, talvez tragicamente hipnotizado nessa repetição de descobertas. Ao chegarmos à praia, a custo ajudo-te a sair do carro para minutos depois nos sentarmos novamente, agora num banco de madeira em frente à praia onde raramente alguém se senta. O calor suave agrada-te, percebo pelo pequeno sorriso. Estranhamente permaneces em silêncio, ali sentado enquanto olhas para o areal dourado, para o mar límpido, para o conforto de pessoas desconhecidas. Há neste silêncio um silêncio maior. Não apenas esta cada vez mais habitual ausência de palavras que permanece após tantas perguntas simples que vou fazendo com insistência para tentar resgatar-te desse lugar abismo. Encontro-o também após compassos desconectados de frases sem sentido que saem da tua boca à procura de uma realidade qualquer que na verdade não existe nem nunca existiu e que invariavelmente nos deixa aos dois em lugar nenhum. Sobressai no teu semblante fechado, quando palavras por ti mal murmuradas resistem como absurdos sem qualquer significado, mas que segues com as mãos, estendendo-as à tua frente como procurasses por uma salvação numa mímica incoerente, vasculhando nesse vazio à tua frente como realmente ali houvesse algo que pudesses tocar e manejar, impedindo-te de delirar. São estes os dias que temos, como cada um deles não passasse de um ponto final, um contínuo fim que recomeça uma e outra vez sem sentido. Seguro-te na mão como se fossemos novamente aqueles jovens que se encontraram décadas atrás para nunca mais nos perdermos um do outro. Olho para ti. Quem sou eu, pergunto-te do nada, esperançada que me respondas de imediato que me reconheces, à tua mulher, que sempre estive aqui e que ainda me amas como no primeiro dia. Olhas-me por segundos intermináveis, essa antecipação transformada num sepulcro das tuas palavras. Não sei, respondes-me por fim. Há um pequeno desespero que fica a levitar entre nós, a imagem de um fantasma desfeito que passou por ti, mas que não conseguiste agarrar. Sou eu, respondo-te calmamente, o sorriso a querer desfazer-se no imediato, sem forças para se manter. Recupero imediatamente outras memórias para nos distrairmos desta ausência entre nós, lanço-as na tua direção como se fossem pequenas boias de salvação. Os filhos, os netos, a família toda, os empregos, dos beijos às desilusões. Incansavelmente, relato tudo outra vez, tu por vezes a fingir que sabes do que falo, onde estás, onde ficámos. O teu nome também a fugir da tua frágil perceção. Sou a tua caixa de memórias. Guardo-as como um fiel arquivista para que nada se perca, resgatando os registos conforme a conveniência dos momentos que se atravessam à tua frente. Revivo contigo uma e outra vez circunstâncias que passámos e que ambos dissemos inesquecíveis. Sou eu quem guarda todos os nossos pormenores delicados, todas as palavras que proferimos entre paixões e desesperos, todas as músicas com as quais dançámos e nos enfrentámos, todas as noites eternas que guardámos connosco porque não queriam voltar a ser dia. Mentiste-me. Afinal esqueceste-me. Como posso continuar a amar-te quando já não existo em ti? Quando procuro pelo meu nome na tua boca e só encontro essa expressão tonta de quem parece nada saber deste tempo, deste dia, deste momento? Ainda subsiste alguma coisa de ti dentro desse corpo cada vez mais quebrado? Tudo isto não parece passar de uma ilusão, uma mentira que foi contada uma e outra vez até se tornar numa verdade inevitável. Terei de permanecer aqui junto a ti para sempre? Segurar-te a mão ainda que para ti não haja qualquer significado nesse contacto? Manter um sofrimento na mesma medida que se mantém um amor? Esquecer-me de mim também enquanto vou lutando em vão contra a ausência de uma realidade? Perder-me nos caminhos que antes me levavam até aos teus segredos? Fingir que ainda sou quem era para ti?
Esqueceste-me.
Não
sou mais que o eco de um grito dentro de ti.