Sunday, December 24, 2023

77 - Caixa de Memórias

Levo-te pelas mãos, devagar, como se aprendesses agora a caminhar. Pé ante pé, vens comigo em passos de criança, seguindo os dois muito juntos, lentamente, frente a frente, eu recuando de costas cuidadosamente, amparando-te pelas mãos até chegarmos por fim ao nosso carro que está no pequeno parque de estacionamento passando o pequeno portão do quintal da nossa casa, já tão magoado pelo tempo, reclamando ao nosso passar. Hesitas quando abro a porta do carro e peço-te para entrar. Respiro fundo e insisto contigo. Com delicadeza e paciência porque sei que não poderá ser de outra maneira. Digo-te que vamos dar uma volta por aí, passear até à tua terra. A tua terra que lá está, tão longe fisicamente de nós como está da tua memória. Vamos onde, perguntas-me tu, aparentemente surpreendido pela minha proposta. À tua terra, repito. Ter com os teus pais que estão à nossa espera muito preocupados. Acabas por aceitar estas mentiras docilmente. Está bem, vamos lá então, respondes-me finalmente, como na verdade tudo isto tivesse sido uma ideia tua. Será uma vontade nossa irmo-nos esquecendo de tudo aos poucos até não sobrar nada na nossa mente, até caírem todos os muros que protegem quem somos, acabando todas as nossas memórias por fugir para lá desse espaço sem horizontes, regressando e fugindo de novo como lhes convém, cada vez mais inócuas como fantasmas desfeitos? Talvez seja uma inevitável consequência de querermos esquecer os nossos pecados, de não pretendermos enfrentar a nossa realidade de frente, amar a nossa solidão. Mas talvez haja um preço por querermos esquecer o que nos convém e não possamos evitar perdermos tudo… as más e as boas memórias, os fracassos e os sucessos, as frustrações e os orgulhos, restando-nos os delírios até não restar mais nada. Não sei. Talvez apenas procure algo que faça mais sentido de que uma mera inevitabilidade genética. A viagem que idealizei até à praia vai demorar cerca de vinte minutos nada mais. Espero apenas que a tua impaciência não regresse e te mantenhas tranquilo até chegarmos ao destino. Na verdade, à medida que o carro vai avançando pela estrada acabo por perceber que se trata de um dia bom porque manténs-te calmo toda a viagem, apreciando a paisagem que descobres e esqueces no mesmo segundo, talvez tragicamente hipnotizado nessa repetição de descobertas. Ao chegarmos à praia, a custo ajudo-te a sair do carro para minutos depois nos sentarmos novamente, agora num banco de madeira em frente à praia onde raramente alguém se senta. O calor suave agrada-te, percebo pelo pequeno sorriso. Estranhamente permaneces em silêncio, ali sentado enquanto olhas para o areal dourado, para o mar límpido, para o conforto de pessoas desconhecidas. Há neste silêncio um silêncio maior. Não apenas esta cada vez mais habitual ausência de palavras que permanece após tantas perguntas simples que vou fazendo com insistência para tentar resgatar-te desse lugar abismo. Encontro-o também após compassos desconectados de frases sem sentido que saem da tua boca à procura de uma realidade qualquer que na verdade não existe nem nunca existiu e que invariavelmente nos deixa aos dois em lugar nenhum. Sobressai no teu semblante fechado, quando palavras por ti mal murmuradas resistem como absurdos sem qualquer significado, mas que segues com as mãos, estendendo-as à tua frente como procurasses por uma salvação numa mímica incoerente, vasculhando nesse vazio à tua frente como realmente ali houvesse algo que pudesses tocar e manejar, impedindo-te de delirar. São estes os dias que temos, como cada um deles não passasse de um ponto final, um contínuo fim que recomeça uma e outra vez sem sentido. Seguro-te na mão como se fossemos novamente aqueles jovens que se encontraram décadas atrás para nunca mais nos perdermos um do outro. Olho para ti. Quem sou eu, pergunto-te do nada, esperançada que me respondas de imediato que me reconheces, à tua mulher, que sempre estive aqui e que ainda me amas como no primeiro dia. Olhas-me por segundos intermináveis, essa antecipação transformada num sepulcro das tuas palavras. Não sei, respondes-me por fim. Há um pequeno desespero que fica a levitar entre nós, a imagem de um fantasma desfeito que passou por ti, mas que não conseguiste agarrar. Sou eu, respondo-te calmamente, o sorriso a querer desfazer-se no imediato, sem forças para se manter. Recupero imediatamente outras memórias para nos distrairmos desta ausência entre nós, lanço-as na tua direção como se fossem pequenas boias de salvação. Os filhos, os netos, a família toda, os empregos, dos beijos às desilusões. Incansavelmente, relato tudo outra vez, tu por vezes a fingir que sabes do que falo, onde estás, onde ficámos. O teu nome também a fugir da tua frágil perceção. Sou a tua caixa de memórias. Guardo-as como um fiel arquivista para que nada se perca, resgatando os registos conforme a conveniência dos momentos que se atravessam à tua frente. Revivo contigo uma e outra vez circunstâncias que passámos e que ambos dissemos inesquecíveis. Sou eu quem guarda todos os nossos pormenores delicados, todas as palavras que proferimos entre paixões e desesperos, todas as músicas com as quais dançámos e nos enfrentámos, todas as noites eternas que guardámos connosco porque não queriam voltar a ser dia. Mentiste-me. Afinal esqueceste-me. Como posso continuar a amar-te quando já não existo em ti? Quando procuro pelo meu nome na tua boca e só encontro essa expressão tonta de quem parece nada saber deste tempo, deste dia, deste momento? Ainda subsiste alguma coisa de ti dentro desse corpo cada vez mais quebrado? Tudo isto não parece passar de uma ilusão, uma mentira que foi contada uma e outra vez até se tornar numa verdade inevitável. Terei de permanecer aqui junto a ti para sempre? Segurar-te a mão ainda que para ti não haja qualquer significado nesse contacto? Manter um sofrimento na mesma medida que se mantém um amor? Esquecer-me de mim também enquanto vou lutando em vão contra a ausência de uma realidade? Perder-me nos caminhos que antes me levavam até aos teus segredos? Fingir que ainda sou quem era para ti?

Esqueceste-me.

Não sou mais que o eco de um grito dentro de ti.


Tuesday, July 18, 2023

76 - Conto de Fadas

Entro no salão de festas tardiamente, atravessando a porta principal, aguardando um instante nessa fronteira invisível sem retorno para parar de suster a minha respiração e tentar respirar o mais normalmente que me é possível neste momento. Por breves segundos ninguém repara na minha presença, ali, suspensa como se não pertencesse naquele cenário, a engolir oxigénio à força, a olhar fantasmagoricamente em redor, à espera de uma tábua de salvação, alguém que mesmo no meio destes preparos me reconheça, de uma mão que antecipe a cadência dos meus passos para me guiar até um canto resguardado e ficar comigo toda a noite a ouvir as minhas angústias como se fossem contos de fadas. Sei que isso não vai acontecer. O meu olhar atravessa os muitos convidados que se misturam uns nos outros sem que possa encontrar-te em lado algum. Talvez tu já me tenhas visto aqui como se estivesse à beira de naufragar e na verdade já só queiras fugir de mim, ou fugir apenas, mas levando-me contigo, não sei. Talvez a partir de hoje possamos reescrever a nossa história, dar-lhe um novo destino, um outro final que não aquele que venho antecipando sem remorso, sem entusiasmo ou esperança. Um final de conto de fadas… Avanço finalmente para o interior do salão e caminho lentamente, o mais elegantemente que consigo por entre os restantes convidados, à tua procura, num passo levitado, como se pudesse evitar tudo e todos, contornando os diálogos animados, soturnos, sensuais, capturando os sorrisos largados na atmosfera da sala celestial e refletindo-os timidamente no meu para libertar alguma desta ansiedade que me rodeia como uma aura de denúncia. Alguns dos convidados olham para mim como se tivesse matado alguém. As suas expressões apenas confirmam o meu receio de sentir que não pertenço aqui. À medida que vou atravessando o salão de uma ponta à outra sinto os seus murmúrios na minha nuca como se fossem segredos acabados de revelar. Talvez na verdade seja apenas uma má escolha da indumentária da minha parte para esta ocasião. O vestido simples de quase inexistente, de cetim branco-pérola pontuado com alguns pormenores vermelhos desmaia pelo corpo fora como se quisesse abandonar-me, tocando-me ao de leve na pele como uma carícia desleal. Abstraio-me desta perseguição invisível e continuo a percorrer o vasto salão avançando ligeira entre os convidados, tentando alhear-me à ressonância dos comentários a ecoar no fundo do meu peito, dos olhares persecutórios ao ritmo dos meus passos, na tentativa vã de encontrar-te aqui... vejo-te finalmente, quase do outro lado da sala. Estavas a olhar para mim também, os nossos olhares a colidirem e entre nós a crescer a sensação de que o mundo podia estar prestes a acabar agora que nós seríamos os únicos a saber qual seria o segredo pela sua ruína. Queima-me a expressão da tua face ao refletires a tua surpresa pela minha presença, aqui, suspensa como se não pertencesse neste cenário, novamente a engolir oxigénio à força para não desmaiar para sempre neste momento e para sempre fundir-me nele. Estamos ao alcance de alguns passos decididos na direção um do outro, de um abraço e um beijo romântico, como nos filmes, como se tudo entre nós pudesse acabar numa frase qualquer pirosa e feliz.  O som da música de fundo apenas aprofunda ainda mais este momento em que há pensamentos suspensos, meus, teus, de todos em nosso redor perante esta cena de filme, à espera de um argumento qualquer salvador, de contexto, de uma explicação plausível para estar a acontecer neste preciso momento. Avanço para o meio da sala. Há ali casais que dançavam lentamente ao som de violinos e pianos ausentes, como se a música fosse também ela inventada. Também eles param ao ver-me no meio de tudo a olhar, para ti, afastando-se para me deixar, ali, sozinha à vista de todos, ensurdecida pela ressonância dos comentários que ressaltam no meu peito, finalmente capturada por todos os olhares já completamente fixos em mim. Talvez seja mesmo da indumentária. Na verdade, talvez a culpa seja minha… podia ter trocado o vestido de cetim branco-pérola pontuado com alguns pormenores vermelhos com o qual andei todo o dia depois da nossa discussão da noite anterior, podia ter-me penteado e não aparecer com esta imagem de quem foi atropelada repetidamente, os pés descalços, não ter descurado a maquilhagem que não deixaria transparecer na minha face tudo o que não se pode transmitir em palavras.

Ainda sou perfeita para ti?

Vejo-te, aí, sozinho.   

Os violinos e pianos ausentes já pararam de tocar.   


Thursday, June 8, 2023

75 - Vilão

 

Desta história hipnótica segura nas nossas mãos entrelaçadas,

restou um momento de respiração suspensa. Todas as imagens rasgadas,

todos os meus vestígios sentença submersos no teu peito arcano.

 

Deste motim que resvalou para o teu colo desamparado,

nasceu uma mágoa de costas voltadas. Todo o meu ser amaldiçoado,

as minhas palavras silenciadas pelo eco deste abismo tirano.

 

Desta solidão acabada e abandonada junto ao teu peito inocente,  

ficou o tempo dos olhares perdidos. O amanhecer do meu corpo ausente,

os meus mistérios esquecidos no recanto de um existir mundano.

 

Sou um delito, um crime, um vilão.

Espaço infinito,

canção que oprime,

pobre de coração.

Monday, April 17, 2023

74 - Unicórnio

 

Nunca poderei compreender o vosso amor. Nunca mais poderei perdoar-te a ausência. Inevitavelmente, não poderei perdoar-me pelo afastamento que entre nós fui deixando construir-se sozinho, tão bem escrita foi esta tragédia sem fim. O destino aos poucos a revelar a ineludível fatalidade, o cruel e amargurado caminho traçado por vocês ao longo daqueles escassos três anos que se tornaram nesse percurso cada vez mais tortuoso, percorrido na direção de uma perdição inevitável, mãos entrelaçadas uma na outra sem hesitação, olhares suspensos da realidade num conforto da fatalidade partilhada, a espaços encoberta por uma magia artificial, futuros severamente rendidos. Consigo recordar perfeitamente o primeiro momento da vossa história de amor iludido. Chegaste numa tarde anunciando essa sensação mútua de euforia e melancolia, na qual dizias ter renascido. Entraste pelo meu quarto adentro, delirada com o novo contorno em redor do teu coração, uma marcação de território vincada e delineada com clara definição, como um desenho concreto feito numa folha de papel à espera de tema. Era oficial. Estavas apaixonada. Não sabias o que dizer... habitualmente só ficavas assim após um novo poema, que, encontrando-te desprevenida, (por acreditavas fielmente que eram os poemas que te encontravam) silenciava-te durante dias, deixando-te num inesgotável sentimento de virtude único que só tu poderias compreender. Eras feliz aí, como pensavas ser com ele a partir desse dia em que pousaste a cabeça no meu colo, o teu longo cabelo indeciso entre o louro e o castanho espalhado como um vento a repousar, os teus olhos de um verde-escuro singular absorvendo o teto do meu quarto como se fosse agora um outro céu, descrevendo-me com um prazer ainda incompreendido para mim, as suas feições harmoniosas, o mistério naquela personalidade masculina recém-adulta, a voz que já comandava a tua vontade sem saber como. Ali de cabeça pousada no meu regaço na verdade já não estavas presente. O teu espírito tinha sido raptado sem um resgate que o pudesse alguma vez mais devolver. Tinhas dezasseis anos, eu, apenas catorze. Quem nos poderia salvar? Mas sorri ao ouvir-te falar de amor naquele dia. Começaste a namorar secretamente porque não querias que ninguém soubesse e tinhas medo da reação dos nossos pais que nos protegiam com uma tenacidade feroz. Irremediavelmente, pouco tempo depois, já toda a gente sabia e comentava, fruto de uma cidade pequena que ecoa os segredos alheios com enorme prazer. Foi uma questão de tempo até o suposto segredo entrar pela nossa casa aos gritos, anunciando-se pela voz do nosso pai entre um timbre de desilusão e franca desorientação. Foram meses sem fim de discussões e confrontos. Desde as profecias sobre os perigos óbvios de sexo desprotegido ou de uma possível gravidez indesejada, aos perigos do desvio de rota de uma vida com enorme potencial em detrimento de um personagem de reputação desgarrada, sem futuro, sem posses que o pudessem validar, sem hipóteses de ser alguma vez digno, tudo foi arma de arremesso, tudo foi medo lançado aos teus pés para evitar que desses mais um passo em frente. Tudo foi feito para te parar como era suposto por quem te amava, ainda que mais não fossem do que empurrões pelas costas para te lançar nos braços dele ainda com mais vigor. Das restrições, ao controlo rígido dos horários, passando pelos castigos, morrendo nas súplicas de quem já não sabia que pessoa ser para voltar a controlar o que nunca foi na verdade controlável, tudo foi feito para te proteger, para te trazer de volta, ainda que intimamente soubéssemos que já não nos pertencias e que havia um caminho inevitável a percorrer do qual não regressaríamos. Foram longos meses de declínio. Onde esteve o gatilho ninguém sabe. Era destino? Queria saber para o poder corrigir. Começaste o teu processo de afastamento devagar como se tivesses traçado um plano de fuga pacientemente. Aos poucos deixaste de falar, dando-me a sensação de estares cada vez mais absorta num mundo ao qual nós não poderíamos aceder. A tua genialidade para aquilo a que eu chamava “mundo dos sentimentos” desaparecida para sempre. O teu corpo subitamente a mudar tragicamente, a envelhecer, a tornar a tua beleza outrora exterior e interior num invólucro desgastado. Os problemas evidentes dos consecutivos estados de magia artificial a entrarem na nossa casa, a derrotarem ferozmente todas as tentativas de te salvar, condenando-nos com uma violência atroz pelas vãs tentativas de salvamento. À força, carregados de esperanças pequenas, os pais levavam-te para as clínicas onde passavas dois, três meses para tentarem recuperar a sua filha. Levavam o corpo e acreditavam trazer novamente o teu espírito quando lhes dizias que desta vez ias conseguir recuperar, que não se iam arrepender e que querias novamente ser surpreendida por poemas como antes. Beijavam-te, regressavam a casa sem ti e guardavam o teu espírito entre eles, chorando todas as noites baixinho quando tudo era silêncio e os desesperos crescem desgovernadamente no nosso íntimo… ainda assim, sobrevivendo na expectativa de que fossem verdade as palavras que saíam da tua boca. Ao ouvi-los, ficava sozinha no meu quarto a pensar porque seria o amor teu inimigo, porque te teria o amor escolhido a ti para ser indigno. Nunca mais iria sorrir ao ouvir falar de amor… Regressavas, mas para regressar para ele e não para nós. Não era preciso esperar muito e de nada serviam as ameaças psicológicas e até físicas dirigidas ao teu amante para se afastar de ti. Repetia-se o ciclo. Uma a outra vez. Desaparecias com ele por vários dias, sem dares notícias e os pais procuravam-te insanamente numa ilusão já completamente inglória. Regressavas inerte e voltavas a desaparecer. Até um dia não voltares nunca mais. Foi o que restou desses dias. O som do telefone a tocar numa hora noturna incompreensível, a voz da mãe a gritar do meio da noite rasgando o seu silêncio de uma forma atroz, tornando-o, para sempre, num abismo horrível, de um desespero sem tamanho que o defina. As lágrimas da mãe morrendo devagar no peito do pai que nunca as conseguiria conter por ter ele também um mar de lágrimas a transbordar. Eu… a sentir que estaria para sempre sozinha a partir desse momento… encontraram-vos juntos, deitados lado a lado de frente um para o outro, num canto de um casarão há muito abandonado, as seringas espalhadas pelo chão, móveis velhos a cair de podre, lixo e sujidade por todo o lado, as vossas mãos a tocarem-se ao de leve como numa despedida, janelas meio fechadas com plásticos, um cheiro nauseabundo a tornar o ar irrespirável, o teu longo cabelo indeciso entre o louro e o castanho prostrado no chão como um vento esgotado, os teus olhos de um verde-escuro singular perdidos e prostrados num outro céu.

Tuesday, October 19, 2021

73 - Doença Incurável

 

Tenho o teu sorriso reservado quando sinto que já não tenho nada para dar. A recordação da tua gargalhada funciona para mim nesses momentos tão difíceis como uma banda sonora estimulante, ainda que na verdade por estes dias seja tão difícil conseguir tirar de ti esse som maravilhoso que envergonha a beleza do mais angélico céu. Tenho sempre nas minhas mãos as tuas mãos, essa sensação da tua pele tão delicada e suave a passar pela minha face quando me atormentam todas as decisões difíceis que não nos deixam avançar, quando o impasse de vermos todos os nossos planos seguirem irremediavelmente por água-abaixo nos vai deixando cada vez mais restringidos a pequenos momentos, onde encontramos, à força de uma sensibilidade amplificada, uma magia outrora eventualmente irreconhecível e desprezada. Uma luz especial que entra pelo quarto dentro para realçar o brilho fugaz dos teus olhos, uma música louvada que toca inesperadamente e nos devolve aos compassos certos do nosso amor, uma palavra esquecida que volta a ter um mesmo significado, recordações cristalizadas que já não ousávamos recordar… são pequenas vitórias que não alteram absolutamente nada neste impasse eterno mas que elevamos e comemoramos no silêncio de um carinho, de um beijo, como se trouxessem nelas o fim desta guerra invisível… são tão delicadas e importantes nesse papel de devolverem-nos alguma esperança, quase talvez na mesma proporção dos dias em que sentes regressar alguma energia ao teu corpo, a qual nos deixa, cruelmente, apenas por breves momentos, à porta de um passado colocado em suspenso. Deixo-te na cama que nunce te devolve mas levo-te comigo para onde vou, sempre, sobre os meus ombros, o teu corpo sem peso, sentada num trono que só tu poderás ocupar por ser para sempre teu, no topo da minha alma. O sol descobre o meu rosto e tento sorrir, por ti, por nós, para evitar pensar e sentir que saio porta fora deixando-te para trás nessa fragilidade corporal, nesse teu sofrimento silencioso onde apenas posso oferecer o meu espírito de guarda. A vida não para e não espera por nós. Porque esperaria? Na verdade eu não quero saber. Independentemente do que o futuro nos trouxer seremos para sempre nós. Independentemente de trazer comigo em permanência essa horrível frustração de não poder entrar-te pelas veias dentro e descobrir onde reside essa maldita e inexplicável doença, combater até à morte pelo regresso da tua vida, corrigir tudo o que está errado, fazer todas as reparações e devolver-te a mecânica da tua alma fabulosa, enérgica e sentimental, seremos sempre nós. Tenho em mim esta doença incurável, para sempre uma fórmula irresolúvel de variáveis infinitas das quais apenas conheço um único resultado que és tu. Estou aqui… Por mais que os dias nos atravessem como se fossemos ambos corpos celestes sem destino, por mais que a vida nos pareça ignorar e o tempo passe ao largo dos nossos braços estendidos, não deixarei que as tuas lágrimas deixem de ter um sentido, por mais que tudo desmorone à nossa volta. Serei corpo inconquistado, armadura de aço inquebrável, dançarás para sempre no meu colo em cima de todos os escombros e escutarei as tuas doces palavras bem perto do meu ouvido, decifrarei todos os seus códigos, todas as mensagens ocultas atrás da fragilidade de uma vida que nunca poderia ter mais significado para mim como agora. Regressarás mais forte e poderei descansar em ti. Deito-me junto a ti só para sentir-me seguro no início desta manhã que renasce gloriosa após atravessar a noite que não quis adormecer… a esperança reinventando-se sozinha. Tenho em mim essa doença incurável. És tu.   

 

 

 

 

Texto para o Rui e para a Ana

Que a vida lhes devolva alguma da sua generosidade e beleza


Saturday, February 6, 2021

72 - Penso que poderia esperar

 

Penso que poderia esperar. Na verdade regressaste apenas há alguns dias. Tudo agora se move devagar. Talvez intimamente só espere que voltes a falhar. Neste presente, já depois de teres assumido a necessidade de ajuda e do tempo passado em recuperação numa clínica de desintoxicação, acabámos aqui os dois sem mentiras para desmascarar. Nada do que tu faças ou possas voltar a fazer tem um pingo de inocência e não poderá passar sem ser imediatamente reconhecido como consequência dos teus hábitos, dos teus vícios que deixaste imiscuírem-se entre nós. Uma culpa antecipada, não há como esconder. Foram longas semanas a aguardar pelo teu regresso, depois da ruína de dias desfeitos pela irreconhecibilidade da tua presença junto de mim, de consequências registadas nas palavras que magoaram mas das quais não te recordas por nesses momentos apenas existires num outro mundo melancolicamente inebriado. Pensei que poderia esperar. Queria salvar-te mas na verdade precisava de ser salvo do que eras e do que não poderás voltar a ser. Essa é a tua luta a partir de agora. Voltar a sorrir sem ser através da falsa sensação de viveres fora de ti. Desde que voltaste ainda não te vi sorrir e por isso só quero gritar. Queria salvar-te. Ainda quero. Mas na verdade essa luta não é minha, ainda que o meu amor por ti talvez me consuma por completo sem teres a oportunidade de o voltares a ver. Porque agora é tempo de reergueres os teus escudos devagar, voltares a segurar na espada sem hesitar e lutar contra os demónios com que tens de conviver a cada segundo. Queria estar lá para ti, afastar tudo da tua frente, ser o teu cavaleiro andante mas essa é uma batalha que terás de vencer sozinha. Inevitavelmente acabo por errar constantemente quando pretendo antecipar as tuas quedas, afastar de ti os meros incómodos do dia, por mas ridículos e simples que sejam, porque não quero ver-te falhar outra vez. Quero ser perfeito para ti, mas a perfeição não chega e na verdade incomoda. Chego perto de ti e é como se fosse alguém que não conheces. Os teus olhos imediatamente escondem-se de mim. O ar rarefeito entre nós a não dar espaço para respirar. Não posso salvar-te. Mas tu sabes que é por esse caminho que vamos. Penso que poderemos esperar. Guardar tudo para mais tarde e deixar este tempo passar enquanto descobres como regressar incólume de tudo o que se passou, imune a todos os golpes que desferiste em ti própria, sobrevivente de um caos que não tem ordem nem tempo para se reorganizar. A sensação do dia a passar por ti tem uma dor que não consegues quase controlar. Queima-te o apego pela vida que ainda permanece em ti quando em simultâneo subsiste uma real noção de total desmerecimento por essa dádiva, à qual, vulgarmente, todos damos pouco valor. Tentas permanecer viva nas pequenas coisas. Uma canção que escutas à janela ao ver a vida passar, num beijo da nossa filha antes de sair para a escola e que na verdade representa uma pequena rendição, numa carta que escreves a ti própria com o objetivo de perceberes que há um perdão no meio disto tudo que é preciso saber encontrar e merecer. Tem de haver algo que possa sobreviver depois de tudo o que se passou. Está aqui algures entre nós. Entre o regresso a uma normalidade e a certeza de que as coisas nunca mais poderão voltar a ser o que eram. Teremos de permanecer ausentes um do outro até que possas efetivamente renascer. Esse é o maior amor que poderei dar-te neste momento. O espaço seguro para recuperar e voltares a ser tu mesmo sem merecer. Ter a noção que lutas primeiro por ti para teres força depois para lutares por nós. Penso que poderia esperar.       

  

 

                                                                               Inspirado em:

                              Think you can wait – The National

Filme: When a Man loves a Woman

71 - Rei morto. Longa vida à Rainha!

 

Soube de ti durante a manhã de ontem. Numa conversa casual, num encontro fortuito e inesperado com uma amiga de infância à muito ausente. Penso que foi apropriado como a tua presença regressou ao meu íntimo, surpreendida admito, longe estava eu de te recuperar ainda que por momentos no meu pensamento. Entre sorrisos e recordações de uma era pós adolescência já perfeitamente arrumada, surgiu o relato da tua vida atual como se tivesse sido um pedido meu. Talvez tenha sido algo na minha expressão ao ouvir novamente o teu nome lançado na conversa, numa primeira abordagem cuidadosa, como se fosse por mero acaso e inocência. Todos nós temos muitos passados guardados. Passados que não hesitamos em trazer de volta para nos animar, para reforçar partes de nós que não poderemos de forma alguma perder, passados que guardamos secretamente porque talvez digam mais de nós do que aquilo que queremos admitir e passados como tu, memórias distantes de outras pessoas que fomos e das quais já não entendemos o ser. Ouvi serenamente o relato. Sobre a tua nova vida distante, sobre uma família que te acompanha e que te será muito preciosa. Sobre como estás uma pessoa diferente, diferente de quando eras meu, subentendi. Desse relato, alguns factos mais importantes que na verdade eu já conhecia, outros mais triviais perfeitamente ausentes da minha realidade, no fundo todos estranhos para mim, agora, tantos anos depois, narrados como se falassem de uma pessoa totalmente desconhecida. Mesmo assim foi o suficiente para voltar a lidar com o sentimento que durante alguns anos me deixou imersa no imenso mar que eras tu. Seguia-te para todo o lado mesmo sem destino assente, fui tua sem reservas, na minha mente não poderia haver outra condição reservada para a minha vida que não fosse estar contigo. Nada nem ninguém poderia demover-me dessa convicção e perante um espelho nada mais poderia ver que não fosse a tua sombra bem delineada ao meu lado, mesmo quando na solidão de noites eternas perdia a consciência e em seguida a segurança da minha realidade nos sonhos esmagados pela tua ausência. Sob o teu nome residia o meu escondido. Na minha inocência juvenil era-me suficiente residir no teu coração, deixar-me encantar pela tua capacidade constante de mostrar em qualquer situação irreconhecível, um segredo, uma razão codificada para estarmos ali os dois a apontar na direção de um futuro que só poderia ser completo quando partilhado por ambos. Criaste essa história para mim desde cedo e deixei-me levar por ela dia após dia, feliz que estava por ser tua protagonista até já não ser nada mais do que uma personagem que pouco controlo detinha sobre a sua própria vida. Deixei-me distrair pelo amor prisão que sentia por ti e pela influência que sobrepunhas nas minhas decisões cada vez mais aglutinadas na única e incólume razão de existir para ti. Já não tenho em mim a exata perceção de quando resgatei algo meu e de como me foi urgente essa necessidade de voltar a sentir a felicidade de conhecer as palavras que saíam da minha boca. Talvez tenha sido a soma de vários momentos que fizeram desmoronar toda essa ideia de um amor único e irrepetível que perduraria para sempre. Talvez tudo tenha acontecido demasiado cedo e com demasiada intensidade, talvez a estranha sensação de ter prematuramente toda a minha história escrita em função de outra pessoa tenha sido avassaladora. Resististe até ao limite da inocência e decência talvez. Admito que foi difícil deixar-te. Foi um abandono e um regresso. Foi regressar a casa e não encontrar ninguém. Não encontrar nada que pudesse ser-me familiar para além do invólucro vazio que era o meu corpo. Tive de voltar a lidar com os meus instintos desmaiados e resgatar a segurança de voltar a confiar na estranha sensação de ser apenas eu, sem mais ninguém, ainda que a então inexperiência de vida não me permitisse a tanto. Ao ouvir novamente o teu nome na boca da minha amiga é esse eu que já não reconheço, que arrumei e deixei para trás, crivado pela aprendizagem de que um amor afinal não é suficiente para definir quem somos. Sorri para dentro de mim e habilmente, mudei de assunto. Eu e a minha amiga acabámos por deixar o passado nesse instante e voltámos a nós, em nós já tão pouco evidente essa intimidade. Prometemos voltar a encontrarmo-nos para beber um café. Não sei se a voltarei a ver… Mas tarde ao chegar a casa ouço as vozes das minhas filhas a correrem na minha direção. A voz do meu marido orienta-me rumo à sua presença serena e na qual poderia sofrer para sempre em sossego. Sou eu num mundo meu. Para já estou blindada, até que a vida me supere de alguma forma.